terça-feira, 9 de junho de 2009

Recordando Manuel Ramos, a alma Belenense do Porto

No dia 7 de Novembro de 2006 faleceu Manuel Ramos, grande Belenense, que por sinal era um dos maior símbolos (no meu entender, o maior) da presença do Clube fora do seu "berço" lisboeta.

É comum cada clube desportivo perpetuar no seu panteão aqueles que foram grandes atletas, grandes desportistas, ou grandes dirigentes. Mas, embora a condição de Manuel Ramos fosse bem mais que a de um "simples" adepto, é nessa categoria que deve ser lembrado, como exemplo maior de uma dedicação extrema, desinteressada e incondicional.

Portuense de gema e Belenense de longa data, Manuel Ramos trabalhou incansavelmente em prol do Clube e do fortalecimento da sua presença no Norte do País, chegando a arregimentar adeptos do Minho e de Trás-os-Montes em torno da "Tertúlia Belenense", sediada na Invicta - da qual foi um dos principais mentores (embora reconhecido pelos restantes como o verdadeiro mentor - afinal de contas foi o seu Secretário-Geral).

Da sua acção e dedicação, a "Tertúlia" é o melhor exemplo. Fundada numa altura em que o Belenenses estava empenhado na construção do Estádio do Restelo, esteve sempre na "linha da frente" na divulgação da obra e consequente angariação de fundos.
Manuel Ramos fez questão de se deslocar do Porto e estar presente em muitas (quase todas) das efemérides relacionadas com o novo Estádio. Naturalmente, para o dia da inauguração - há pouco mais de 50 anos - deslocou-se também um grandioso contingente nortenho, talvez o maior de todos de fora de Lisboa.


Em simultâneo, Manuel Ramos colaborou intensamente com o jornal do Clube, sendo responsável por uma rubrica específica dedicada aos "Belenenses no Porto".

Os tempos de Manuel Ramos chegaram a ser aqueles em que não era descabido considerar o Belenenses como o clube lisboeta (ou até clube não nortenho) com maior número de adeptos no Norte!

Embora a "Tertúlia" se viesse a perder, Manuel Ramos nunca cessou a sua inigualável paixão ao Clube. Ainda em 2004, no âmbito da paragem portuense da "volta" pelas filiais, Manuel Ramos estava lá, recebendo o justo carinho do Clube do seu coração.



Reproduzimos em seguida alguns textos e imagens para recordação desta nossa grande figura.
Começamos por uma "auto-entrevista" do próprio Manuel Ramos, publicada no Jornal "Os Belenenses" em Janeiro de 1955, onde este explica a sua filiação clubística:

"- Se sou Belenenses há muito? Desde que entrei para o Liceu de Alexandre Herculano, tinha então nove anos. Fui lá encontrar muitos simpatizantes do Belenenses – e quis a sorte que um deles (talvez o maior…) ficasse a ser meu companheiro de carteira.
Refiro-me ao Dr. João de Sobral Mendes, ainda hoje um grande amigo do Clube.

O Belenenses era o motivo preferido das nossas conversas diárias. Foi a ele que eu primeiro ouvi contar as proezas dos nossos grandes jogadores dessa época: o “Pepe”, o Augusto Silva, o César de Matos, o Joaquim Almeida, os Ramos, etc., etc.
Lembro-me muito bem de que (já então!), em vésperas de jogos internacionais ou entre selecções regionais, nos entretínhamos (até às vezes em plena aula!) a formar as “linhas” com muitos jogadores do Belenenses… Para nós, não havia melhores! E os cálculos que fazíamos quanto ao desfecho dos encontros do nosso Clube, nos campeonatos em curso, levavam-nos invariavelmente à posse do título. Era tão fácil – e tão agradável!...
(…)
- O que mais quero para o Clube? Sem dúvida nenhuma, o novo Estádio do Restelo. Mais do que quaisquer vitórias – mesmo em campeonatos…
No dia em que tivermos construído o estádio – teremos alcançado um triunfo muito maior. Esse será o dia mais feliz da minha vida!"


Continuamos com alguns excertos da série publicada sobre o Cinquentenário do Estádio do Restelo, onde se constata a incansável acção de Manuel Ramos:

"Decorrendo o ano de 1952, continuavam os apelos à adesão de sócios. Mas surgiam já e também grandes – e comoventes - sinais de apoio da «nação azul».

(...) [Um] exemplo (...) que viria até a originar uma das mais emblemáticas forças de apoio popular em prol do estádio e do Clube. Assim era o anúncio no portuense «Jornal de Notícias» [do qual Manuel Ramos veio a ser director]:
«Agora que a construção do novo estádio do Belenenses vai entrar em fase mais activa, iniciando-se em breve os respectivos trabalhos, sabemos que os sócios e adeptos do clube residentes no Porto e nos concelhos vizinhos estão interessados num grande movimento de solidariedade tendente a obter fundos que se destinem àquelas obras.
Vai ser constituída uma comissão central e serão, depois, distribuídas listas para inscrição de todos os bons amigos do Belenenses, que atingem elevado número em terras do Norte.»

A segunda maior cidade e o Norte de Portugal diziam também «presente!». Estava prestes a nascer um dos mais importantes e incansáveis núcleos de Belenenses do País, como veremos adiante.

À cabeça de tão admirável movimento, o ilustre jornalista Manuel Ramos, que ao mesmo tempo inspiraria um outro grande exemplo, a ser seguido por mais consócios: voluntariamente passou a pagar uma quota suplementar de 20 escudos!

(...)

Quanto às campanhas e iniciativas de sócios e adeptos, não era menor o frenesim. O entusiástico grupo do Norte a que já nos referimos no Capítulo anterior, liderado pelo notável jornalista Manuel Ramos, conseguiu por fim a criação de um núcleo, com simpatia designado como «Tertúlia Belenense», com sede na cidade do Porto. No dia 20 de Dezembro de 1952, nos salões da delegação portuense do Automóvel Clube de Portugal, teve lugar a primeira reunião, premiada com sucesso imediato. Seguiu-se uma nova reunião logo a 5 de Janeiro de 1953, demonstrando o bom andamento da iniciativa, bem como um concorrido jantar de confraternização, poucos dias depois (11 de Janeiro), contando com presença avalizadora do próprio Presidente do Clube (Francisco Mega). Uma merecida prova de reconhecimento que muito alentou os Belenenses da região.

(...)

Aliás do Norte, do mesmo Manuel Ramos, o Belenenses logo aproveitou uma excelente idéia. Recorde-se que o referido consócio, num gesto voluntário e de grande generosidade, já havia oferecido ao Clube o pagamento de uma quota suplementar. No Boletim de Dezembro de 1952 o Clube exortou os restantes consócios a seguirem tal exemplo, registando uma receptividade que dificilmente podia ser maior: sucederam-se os novos voluntários… às centenas!

(...)

[No ano de 1954] A «Tertúlia Belenense», por sua vez, também fazia o que podia – sempre apoiados na incontornável figura de Manuel Ramos, que fazia da redacção do «Jornal de Notícias» ponto de distribuição de vinhetas e mealheiros. Ambicionava já a instalação de uma sede para a «Tertúlia», mas o ano não se revelaria propício para tal (como curiosidade, as reuniões continuaram a ter lugar na «Leitaria Primus», na Rua Rodrigues Sampaio, no Porto).
Em novo jantar de confraternização, realizado a 27 de Setembro de 1954, chegou a reinar o desânimo. Apesar de novo feito – a primeira abertura de mealheiros fora da Secretaria do Clube – e de mais uma brilhante e emocionada evocação da história do Belenenses (celebrava-se também o 35º aniversário do Clube) Manuel Ramos mostrou-se profundamente desiludido com o que considerava ter sido uma fraca adesão ao jantar (cerca de trinta pessoas, quando sabia serem às centenas os Belenenses no Porto). Não fosse o pronto e caloroso incentivo dos presentes (em especial de Diamantino de Carvalho, outro Belenense «ferrenho») e a «Tertúlia» poderia ter acabado ali. Mas continuou, em distante mas enorme – cada vez maior – amor ao Belenenses!

(...)

Mantendo ainda especial atenção sobre o que se passou no ano de 1955, cumpre destacar – uma vez mais – aquele que foi talvez um dos maiores símbolos do «querer Belenense» em toda a campanha do Estádio do Restelo.

Já aqui referimos: a devotada e incansável «Tertúlia Belenense» no Porto, ela própria fruto da solidariedade e empenho despertados pela construção da nova «casa azul». Mas o ano de 1955 marcaria uma grande etapa na vida daquele grupo de indefectíveis do Norte de Portugal, como veremos de seguida.
(...) À frente das «tropas» estava o jornalista Manuel Ramos (Jornal de Notícias), figura que de longe fazia pulsar um enorme coração azul, mas que era também presença assídua e sempre considerada nos grandes momentos do Belenenses… em Belém.

A «Tertúlia Belenense» nem sempre viveu dias de ânimo e felicidade. Sofreu com certa desmobilização ou alheamento, sofreu com a perda do campeonato em 1955… mas ressurgiu sempre, estóica, como se cada golpe a fizesse mais forte e tenaz.

Um dos seus problemas concretos – «práticos» – era a falta de uma sede própria. Entre salões cedidos (gentilmente), esta ou aquela simpática «leitaria» (como a «Leitaria Primus»), a verdade é que para realizar as suas reuniões a «Tertúlia» não dispunha de condições próprias e condignas.

Até que em Junho de 1955 a vontade começou a ganhar forma. Falava-se de um primeiro andar no centro da cidade do Porto, não ideal, mas satisfatório…

Paralelamente, foi lançada uma iniciativa que devemos obrigatoriamente mencionar, não só por dizer respeito à «Tertúlia», mas porque evoca também um outro episódio da história do Clube. É que no final do «fatídico» encontro com o Sporting Clube de Portugal em 1955, nas Salésias (o que ditou a perda de um campeonato a minutos do fim), registaram-se alguns desacatos… posteriormente punidos pela Federação, com a aplicação de uma multa ao clube.

Entendendo que, por um lado, era dever dos sócios ajudar a «aliviar» essa pena imposta ao Clube, e que, por outro, deviam ser todos os sócios a assumir a culpa (ainda que só alguns fossem verdadeiramente responsáveis), Diamantino de Carvalho, um dos mais ilustres e intervenientes consócios do Norte, sugeriu que fossem os sócios a pagar a multa em causa, contribuindo cada um de acordo com as suas possibilidades.
Um belo exemplo de desportivismo e amor ao Clube…

Regressando ao assunto principal, foi em Setembro de 1955, altura de aniversário do Clube (mas também, como veremos posteriormente, momento-chave na construção do Estádio) que a «Tertúlia» finalmente conseguiu o seu objectivo. Assim deu conta o Jornal «Os Belenenses»:

«Foi solenemente inaugurada a sede da Tertúlia de «Os Belenenses» no Porto

A Tertúlia de «Os Belenenses» no Porto, fundada, em boa hora, há cerca de três anos, por um grupo de bons e dedicados amigos do Clube, realizou no passado Domingo [dia 25 de Setembro de 1955] o sonho que vinha acalentando desde a sua criação. A partir desse dia, tem a Tertúlia uma sede condigna, pequena embora, mas que não envergonha o Belenenses – cujo prestígio e bom nome, aliás, sempre têm sido defendidos pelos homens que no Porto se dispuseram a criar uma verdadeira «casa belenense».

(...) falou o nosso consócio Manuel Ramos, em nome da Comissão Dirigente da Tertúlia. Começou por saudar o Sr. Dr. Urgel Horta, afirmando que o chefe do distrito, a não estar presente, não poderia ter enviado àquela festa um representante mais qualificado. Desportista ilustre, com uma obra notável dentro do F.C. do Porto, a sua presença ali constituía motivo de satisfação para todos os Belenenses. Lamentado o motivo por que o Sr. Dr. Domingos Braga da Cruz não pudera comparecer, Manuel Ramos pediu ao Sr. Dr. Urgel Horta que dissesse ao Sr. Governador Civil quanto todos os presentes desejam as melhoras do seu filho.

Saudou, depois, o Sr. Dr. Paulo Sarmento, vereador municipal. Também a Câmara quisera fazer-se representar por um desportista prestigioso, que todos admiram. O facto equivalia a uma redobrada honra.



O orador cumprimentou, a seguir, o Sr. Capitão Magalhães, pedindo-lhe que transmitisse ao Sr. Tenente-Coronel Santos Júnior a certeza de que a Tertúlia sempre saberá cumprir, sem esforço de maior aliás, aquelas disposições legais a que todas as colectividades congéneres estão sujeitas.

Depois, Manuel Ramos agradeceu a presença dos clubes da cidade, dizendo que se permitia destacar o nome de dois deles: o F.C. do Porto e o Sporting Clube Vasco da Gama. O primeiro é um amigo de sempre. São velhas e fortes, indestrutíveis, as relações de amizade entre o glorioso clube portuense e o Belenenses. O Vasco da Gama tem a irmaná-lo ao nosso Clube a mesma Cruz de Cristo – que os atletas das duas colectividades, orgulhosamente, usam na camisola. Dirigindo-se ao Sr. Dr. Miguel Pereira, vice-presidente do F.C. do Porto, Manuel Ramos, depois de fazer o elogio do ilustre dirigente, que presidiu há anos aos destinos do grande clube, onde realizou uma obra de maior valia, garantiu-lhe que a Tertúlia do Porto sempre procurará trabalhar pelo bom entendimento entre Porto e Belenenses – cuja amizade nada ou ninguém fará destruir.

O «Solar dos Leões» e a «Casa do Benfica» mereceram também duas palavras amigas de Manuel Ramos. Colectividades de idênticos fins, ambas elas trabalham, afinal, como a Tertúlia, para um maior engrandecimento dos seus clubes – e do Desporto, portanto.

O orador saudou, depois, a Imprensa e a Rádio, o que fez, quanto à primeira, esquecendo por momentos a sua qualidade de jornalista. A Tertúlia – afirmou – muito deve aos jornais e à Rádio.
As últimas palavras de Manuel Ramos foram para o Clube, para os seus dirigentes, associados e jogadores. Garantiu que a Tertúlia saberá continuar a trabalhar, como até aqui, em favor do Belenenses – seu grande e único objectivo!; que deseja ter a colaboração de todos os belenenses, sem excepção, procurando uni-los, cada vez mais, sob a bandeira do Clube; e que os belenenses do Porto, acreditando embora no valor da sua equipa de futebol e na competência do seu treinador, saberão manter-se fiéis ao seu ideal de sempre, sejam quais forem os resultados no campo da luta. Saudou todos os sócios, presentes e ausentes, e, falando do esforço que representa a inauguração da sede da Tertúlia, pôs em destaque a preciosa colaboração recebida do Sr. Alfredo Castro, desportista distinto e artista de méritos reconhecidos, ali, por curiosa coincidência, representando o Sporting Vasco da Gama.
Voltado para o Sr. Dr. Paiva Raposo, Manuel Ramos terminou por dizer que os belenenses do Porto não faltarão, no próximo ano, à inauguração do grande estádio do Restelo.

(...) Durante o dia, a sede foi visitada por elevado número de belenenses – do Porto, de Lisboa e da Província.»

(...) Em Novembro de 1955 seria o próprio Manuel Ramos a fazer uma apreciação sobre a nova sede da Tertúlia, ao Jornal do Clube:

«(…) A sede da Tertúlia – e temos sempre o maior prazer em recebê-lo lá! – é uma coisa modesta, que mais não conseguimos. Estou certo, porém, de que não envergonha o Belenenses e corresponde perfeitamente ao que os nossos consócios do Norte desejariam possuir. Instalações maiores e melhores, quando o Clube vive um momento de apertada economia e em que todos os esforços devem conjugar-se com vista ao Estádio do Restelo – seria, não há dúvida, asneira crassa.

O que ali está – com a sua sala de bilhar, com o seu bar, com a sua sala da direcção e secretaria – chega muito bem para as presentes necessidades e aspirações. Oxalá, porém, essa casa viesse um dia a mostrar-se pequena demais para o seu movimento. Era bom sinal!

Para já, os sócios do Belenenses e da Tertúlia podem frequentar a sede todas as noites – pois ali, em camaradagem amiga, encontrarão um verdadeiro ambiente belenense.(…).»

Manuel Ramos exortava todos os Belenenses a ajudarem a Tertúlia e, dessa forma, o Belenenses. Quanto ao Estádio do Restelo, revelou ainda que já estava em estudo uma grande excursão dos Belenenses do Norte, para estarem presentes no grande dia da inauguração!

Como referimos anteriormente, a Tertúlia «centralizava» a recolha de mealheiros no Norte e até já tinha tido o privilégio de realizar uma abertura, algo que esperava repetir por altura do seu terceiro aniversário – desta vez na sua sede.
Assim aconteceu, numa festa realizada a 22 de Dezembro de 1955 (data que por vezes é confundida com a de aniversário – só que em 1955 o dia 20 correspondia a um dia útil).

(...) Falta-nos referir que a sede da «Tertúlia» situava-se no 1º andar do nº 875 da Rua Fernandes Tomás, no Porto…

Como se pode facilmente constatar, é com todo o merecimento que os episódios da história da «Tertúlia Belenense» têm lugar especial numa «história» do Estádio do Restelo, como aliás já o tiveram em livros sobre a história do próprio Belenenses (da autoria de Acácio Rosa). Exemplos como o de Manuel Ramos, nunca será demais repetir, são raros e inexcedíveis."


Por fim, um texto publicado hoje mesmo no "seu" Jornal de Notícias (de Manuel Vitorino c/ Jorge Vilas), que nos revela outras facetas daquele nosso consócio, homem de fortes princípios, determinado... mas também de excelente humor:

"Morreu Manuel Ramos
A hora dos coronéis

Manuel Ramos foi, durante anos, um assíduo frequentador do café "A Brasileira", na Baixa portuense

"A sua postura suscitava respeito. Era discreto, sabia ouvir como poucos e era muito exigente. Com ele próprio e com os outros", afirmou Carlos Lage, presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte, amigo de Manuel Ramos, ontem falecido e cujas exéquias fúnebres serão efectuadas, hoje, na igreja da Lapa, no Porto.

Foi um jornalista de corpo inteiro. Teve uma vida dedicada ao JN, onde trabalhou durante 47 anos, em que foi, entre outros cargos, director (entre Setembro de 1978 e Dezembro de 1979) e chefe de redacção. Sabia-se que estava doente há muito tempo e temia-se pela sua morte. Nesta Casa feita de papel impresso, partilhou alegrias e tristezas. Percorreu todos os patamares da empresa foi revisor, repórter da cidade, redactor, chefe de redacção, director. Na hora do seu desaparecimento - aos 86 anos, nasceu em 16 de Fevereiro de 1920 -, fica a memória de um homem exemplar e rigoroso, tendo repartido o seu saber e sua experiência de vida por diferentes instituições sociais e culturais da cidade.

E amigos "Era um homem de grande carácter. Interessava-se por tudo. Quando entrava na livraria, procurava saber as novidades editoriais. Os últimos livros que comprou cá foram obras de Lobo Antunes e José Saramago", contou, ao JN, Henrique Perdigão, dono da Livraria Latina, na Praça da Batalha, um dos locais habituais de tertúlia de Manuel Ramos. O outro era, nos bons velhos tempos, o café "A Brasileira".

De volta aos elogios "Convivi com ele [Manuel Ramos] nos tempos da Constituinte e a imagem que deixou foi de um homem rigoroso e de independência face às propostas apresentadas. Foram tempos memoráveis. Também foi um dos alicerces da democracia", recordou Carlos Lage.

O antigo eurodeputado lembrou, ao JN, outros episódios vividos ao longo do anos, confidências da militância partidária vividas por ambos dentro do PS/Porto "A escolha dos candidatos fez-se de uma forma curiosa, já que uma boa parte das pessoas não tinha a noção do que era a Assembleia Constituinte. Mas Manuel Ramos cedo evidenciou a sua presença", destacou Carlos Lage. O livreiro Henrique Perdigão preferiu destacar o "homem incansável", o jornalista criterioso e que, nas horas difíceis, não virava a cara à luta: "Quando quiseram fechar a livraria, por causa de uma acção de despejo, os seus escritos no JN contribuíram para a cidade tomar posição. A Latina sempre foi uma referência cultural. A livraria não fechou e ganhámos a acção em tribunal", contou o livreiro.



Na oposição a Salazar

Manuel Ramos sempre esteve ligado aos círculos da Oposição ao regime de Salazar e Caetano. Conviveu com António Macedo, Carlos e Mário Cal Brandão e juntamente com Vital Moreira e outros constitucionalistas foi redactor da Lei Fundamental que resultou do 25 de Abril. Porém, a sua acção cívica estendeu-se a diversas instituições e organismos da cidade. Foi membro da primeira comissão administrativa da Câmara Municipal do Porto, presidida pelo arquitecto Artur Andrade; mais tarde, vice-governador civil do Porto, ao lado do seu amigo e correligionário Mário Cal Brandão. Pela sua acção e pelos serviços prestados à causa pública, a Câmara do Porto concedeu-lhe, no início da década de 80,a Medalha de Honra da Cidade. Ainda como jornalista e figura pública, Manuel Ramos teve particular intervenção na crise vivida durante bastante tempo no Asilo Profissional do Terço, uma instituição de relevantes serviços prestados à cidade e cuja gestão danosa foi objecto de intervenção por parte do Ministério Público e da Segurança Social do Porto.

Manuel de Sousa Ramos era casado com Silvina de Sousa Ramos, pai de Maria Manuel Ramos e avô de Sílvia Regina Vilas e Marta Luísa Vilas Dias. Encontra-se depositado na capela mortuária da igreja da Lapa, onde, hoje, pelas 15 horas, terá lugar a celebração de exéquias fúnebres. O féretro seguirá para o cemitério do Prado do Repouso, onde o corpo será inumado.

À família o JN apresenta as mais sentidas condolências.

A "hora dos coronéis"

A "hora dos coronéis" chegava depois do jantar. O militar de plantão nas instalações dos Serviços de Censura, à Rua de Santa Catarina, telefonava pontualmente às 21 horas e Manuel Ramos fazia questão de ser ele a atender, embora quem o conhecesse soubesse que paciência evangélica era virtude que ele não cultivava.

"Notícias sobre o almirante Tenreiro são para cortar" - dizia o coronel do lado de lá do telefone. "Para cortar, senhor coronel? Então, já não se pode falar de um homem que tantos serviços tem prestado à Pátria?", repontava Manuel Ramos, do lado de cá, em ar de gozo. "E também estão proibidas notícias sobre suicídios", informava, noutra altura, o coronel. E Manuel Ramos escrevia nas suas notas diárias "A Censura proibiu os suicídios em Portugal"…

São aos milhares as notas de Censura que ainda existem no Centro de Documentação do "Jornal de Notícias". Como a desobediência nestes casos era crime e podia dar azo a julgamento em Tribunal Plenário, outro remédio não havia senão seguir à risca as "ordens dos coronéis", que não se limitavam a dá-las pelo telefone. Todos os dias, o Maciel, contínuo da Redacção, ia a Santa Catarina levar as prosas para os censores poderem cortar, com lápis vermelho - em Lisboa, o lápis era azul - os extractos que eles considerassem não estarem de acordo com os cânones do regime. E invariavelmente os cortes deixavam as notícias sem qualquer sentido… Manuel Ramos, que sempre foi um homem da Oposição, ficava vermelho de raiva com todos estes disparates. Também no Centro de Documentação do JN há milhares de notícias arquivadas com o selo dos coronéis. E quanto à guerra colonial, que mobilizou milhares de jovens para as antigas colónias, nem pensar. Daqui apenas podia dar-se à estampa as notas oficiais que, normalmente, só contemplavam o número de mortes e feridos. Mas não se fazia, então, as notícias? Manuel Ramos, neste particular, era inflexível "Nós escrevemos; eles que cortem se quiserem", sentenciava."


De acordo com a informação prestada pelo Clube, Manuel Ramos, que era à data o sócio nº 20, foi elevado a Sócio de Mérito em 1959 e em Novembro de 2002 foi distinguido com o mais alto galardão do Clube, a Cruz de Cristo de Ouro - Mérito e Dedicação.

Que recordemos para sempre Manuel Ramos com o mesmo carinho e respeito que nutria pelo seu Clube - o nosso, o nosso Grande Belenenses!

Nota: uma primeira versão do texto foi publicada pelo autor no blogue Canto Azul ao Sul (9 de Novembro de 2006).