quarta-feira, 27 de maio de 2009

Grande Vicente!

Lenda imortal, coração grande

Ao escrever sobre Vicente (recuso o vulgarizante artigo definido) os maiores louvores e elogios que se lhe possam fazer… obrigatoriamente pecam por defeito. Nunca o vi jogar (salvo pelas imagens do Mundial de 66), mas os livros e os testemunhos de outros não deixam margem para dúvidas. Vicente é o arquétipo do ideal Belenenses.

Possuidor de capacidades técnicas ímpares e de uma inteligência táctica notabilíssima, se pudesse jogar hoje Vicente desmentiria com facilidade a idéia de que os jogadores de outrora não teriam lugar no futebol actual. Com extrema facilidade. Com uma concentração invulgar, sabia posicionar-se, manter a vista na bola, adivinhar os pensamentos do adversário e fazer os "tackles" no momento exacto, naquela fracção de milésimos de segundo tão difícil de calcular até mesmo para os melhores físicos que se possam reunir (ainda menos outros jogadores de hoje em dia). Assim "cortava" bolas com eficácia de pasmar, quando o adversário ainda mal tinha dado conta da sua presença. Tornou-se mesmo popular a expressão, quase cinematográfica: "Corta, Vicente!"

Mas se as qualidades técnicas elevaram Vicente à galeria dos melhores de sempre do Mundo (sim, uma vez mais, nada de exagerado), as qualidades humanas em nada ficavam atrás. Antes, as duas eram complemento evidente, que se traduzia no próprio comportamento em campo. Acanhado, humilde, discreto, Vicente era e é de uma bonomia desconcertante, de uma quase ternura pelo próximo. E com os adversários, em campo, não fazia excepção. Ao falar do Vicente uma das primeiras coisas que o meu Pai se recorda (ele sim, viu-o jogar) era a forma como este jogava sempre, mas sempre sem maldade. E não era apenas a intenção, Vicente nunca ou raramente magoou algum opositor. Mesmo quando pensasse que o tinha feito, era o primeiro a confortar o jogador caído, como se de um irmão de sangue se tratasse. Vejam só, tentem conceber para os dias de hoje um jogador que seja por si só uma autêntica e intransponível muralha defensiva (agora chamam-lhes "trincos", "ferrolhos" ou sei lá o quê) sem nunca recorrer à violência física. Só mesmo algum "craque" de outro mundo, só mesmo alguém com talento infinito. Só mesmo um Vicente, como não os há.

Num passado jantar de aniversário do Clube também tive o privilégio de escutar mais um impressionante depoimento de quem viu o Vicente em campo. Foi da parte do grande fadista e Belenenses dos sete costados, Carlos do Carmo (pouco mais velho, vizinho de bairro e aluno da mesma escola que o meu Pai), que contou perante uma embevecida plateia azul como Vicente lhe proporcionava uma peculiar forma de apreciar um jogo de futebol. Confessou Carlos do Carmo que numa daquelas tardes de Domingo decidiu seguir com a vista apenas e só Vicente, abstraindo-se de tudo o resto, do que faziam todos os outros jogadores e a própria bola. Não surpreendentemente, valeu a pena, disse. Valia a pena só ver Vicente jogar. Por tudo o que já referi acima, porque a sua visão e inteligência faziam com que o decurso de um jogo inteiro se concentrasse e palpitasse naquele cérebro, naqueles músculos… como um Deus que se passeia por entre mundanos e impotentes mortais.


A carreira e breve história de um campeão

Não, o Belenenses não teve a alegria de ver Vicente integrar uma equipa vencedora do título máximo do futebol nacional. Mas como veremos, é pormenor de somenos. Porque nem valeria afirmar que Vicente merecia um Campeonato Nacional. Um qualquer Campeonato Nacional é que deveria estar à altura de merecer Vicente!

Vicente Lucas nasceu em Lourenço Marques (hoje Maputo, capital de Moçambique), no bairro pobre do Alto Mahé, a 24 de Setembro de 1935. Filho de Lucas Matambo, tipógrafo, e de Margarida Heliodoro, era o mais novo de uma numerosa prole (tinha 4 irmãos). Entre os irmãos mais velhos, claro, outra incontornável referência do futebol: o nosso Matateu (Sebastião Lucas da Fonseca - ou Lucas Sebastião, como corrigiu a sua filha Argentina, há tempos).
É difícil falar de Vicente sem falar de Matateu, eram do mesmíssimo sangue e foi por influência deste último que o irmão seguiu na mesma profissão e o seguiu até ao Belenenses. E ambos foram futebolistas excepcionais. No entanto Matateu chegou primeiro, vingou, tornou-se goleador de sonho e era um homem extrovertido e idolatrado pelas multidões com a maior naturalidade. Vicente em boa medida era o oposto. Jogador defensivo, introvertido e pouco ou nada ocupado com a sua fama. Por tudo isto e desde a época em que jogaram no Belenenses existe uma injusta tendência para colocar Vicente sob a "sombra" do irmão. Não, as glórias de um e outro são absolutas.

Vicente, tal como o irmão, também tinha alcunha no bairro. Só que enquanto "Ma' Tateu" (que em landim significa crosta de pele, talvez por se esfolar frequentemente nos pelados da “bola”) vingou junto das gentes da Metrópole, "Ma' Ndjombo" (que em landim significa muita sorte), a de Vicente, já não.

Vicente começou por jogar num clube de bairro, até ingressar como júnior no mesmo clube por onde passara o irmão Matateu, o 1º de Maio, já então filial do Belenenses (ainda é hoje). Havia sido João Belo (Campeão de Portugal pelo Belenenses em 1933) a descobrir o "filão" daquela família.
Foi quando já Matateu levava ao delírio as bancadas das Salésias que o nome do seu irmão começou a ser falado. Dizia o irmão mais velho que Vicente ainda era melhor que ele! Começaram então os esforços para juntar os dois em Belém, algo que apesar da maior resistência de Vicente (e da sua mãe), acabou por acontecer.
O Belenenses, Lisboa e Portugal rebentavam de ansiedade. Falava-se da vinda de um "Matateu II". Quando Vicente finalmente desembarcou no Cais da Rocha do Conde de Óbidos, a 30 de Junho de 1954, tinha à sua espera uma numerosa comitiva, que incluía não só dirigentes do Clube, o irmão Matateu, mas todo um ajuntamento de associados e curiosos. Foi reportagem de jornal! Ao saber que o estampavam já com o epíteto de "Matateu II", a forte personalidade e o orgulho de Vicente logo o levaram a exclamar: "Matateu II não! Eu sou o Vicente." Uma vez mais, um génio do mesmo sangue, mas outro génio.

A partir da estreia - com tão só 19 anos – foi questão de pouco tempo até Vicente encantar os Belenenses, o País e o Mundo. No Belenenses destaca-se a vitória na Taça de Portugal, em 1960.

Pela Selecção imortalizou-se também como um dos melhores de sempre. É o 3º jogador do Belenenses com mais internacionalizações (20), atrás apenas do irmão (27) e do igualmente enorme Augusto Silva (21). Mas talvez o feito maior e mais conhecido de todos foi a presença no Mundial de 1966, onde tratou de "secar"… o "Rei", o brasileiro Pelé. Deixo para outra ocasião um relato sobre a brilhante saga de Vicente em Inglaterra, mas aproveito para fazer referência a um artigo que Luís Oliveira deixou no bloghue Canto Azul ao Sul, que traduz bem a grandeza de Vicente e a ajuda a esclarecer certo equívoco quanto à sua responsabilidade por certa lesão do "Rei" nesse Mundial: "A simpatia de Pelé pelo Belenenses".

A título de curiosidade, Portugal acabou por ser eliminado pela Inglaterra num desafio em que Vicente… não jogou, alegadamente por não estar em condições físicas. Em surdina, timidamente, houve e há quem assegure que, tivesse Vicente jogado, não teríamos perdido esse jogo e quiçá o Mundial teria sido português. Talvez se Vicente fosse de outro clube esta história fosse diferente…
Mas hoje por aqui fico em detalhes sobre a sua carreira, terminada de forma triste… que nos faz pensar na justiça que há neste mundo. Uma daquelas estúpidas e desleais rasteiras da vida… logo a um dos mais leais e bons dos homens.


Vicente hoje

Vicente costuma ser presença assídua no Restelo e em efemérides do Clube (em boa-hora este o elege como símbolo máximo). Tive o privilégio de me cruzar com ele algumas vezes, causando-me sempre uma estranha sensação… de arrepios, de rendição absoluta e paralisante. Novamente, como um mortal que se atreve a aproximar de uma divindade. E o bom Vicente sempre tão afável, tão simpático, como se eu e todos os outros afinal fôssemos menos que ele!
A primeira vez que estive a seu lado foi num treino de captação, ainda Vicente era responsável nas nossas camadas jovens (fui lá mais por curiosidade, pois nunca na vida me senti talhado para jogador). Nessa tarde constatei como Vicente, apesar da sua generosidade e simpatia, não deixava de ser um mestre rigoroso e disciplinador. Fruto da escola de muitos e excelentes treinadores, logo com o mítico Riera à cabeça, não esquecer...
Noutra vez e em almoço da Mailing List da Trafaria, novo encontro. Uma nota: ao desembarcarmos do cacilheiro, vindos de Belém, os homens que estavam no cais (completamente alheios ao evento) não evitaram comentar entre si: "Olha, é aquele, o irmão do Matateu...".
Por fim, a última vez que estive com Vicente foi no âmbito da "Volta Azul a Portugal" pela filiais do Belenenses. Em Elvas, uma vez mais, Vicente a fazer as vezes de embaixador do Clube. E que Senhor Embaixador!

Costumamos dizer, por rigor, que nenhum técnico ou jogador alguma vez estará acima do Belenenses. Pela lógica, nem faz sentido. Mas Vicente é Enorme como o Belenenses. Hoje e para mim é como se fôsse um 2ª Aniversário do Clube.
70 anos é uma bonita idade, mas cá estaremos por muitos mais ainda para juntos festejar novas vitórias!

Parabéns Vicente!
Parabéns! Obrigado por tudo! Obrigado!

Nota: uma primeira versão deste texto, pequena homenagem por ocasião do 70º aniversário de Vicente, foi publicada pelo autor a 24 de Setembro de 2005 no blogue Canto Azul ao Sul