terça-feira, 26 de maio de 2009

SÉRIE: Cinquentenário do Estádio do Restelo - Capítulo I - 4ª parte

Capítulo I: Antepassados do Estádio do Restelo
4ª parte: o adeus às Salésias


No seguimento do «ultimato» de 1946 não foi fácil nem pacífica a escolha do local para o novo estádio do Belenenses, como veremos detalhadamente no capítulo seguinte.

Quando em 1948 ficou finalmente resolvida a questão, iniciou-se uma verdadeira corrida contra o tempo, uma vez que o prazo estabelecido para o abandono das Salésias (6 anos) aproximava-se a passos largos… e a tarefa de erguer o novo complexo, como também veremos adiante, parecia ciclópica.

A vitória no Nacional de futebol de 1945/46, por sua vez, elevou ainda mais as exigências. Em virtude do final de carreira de muitos dos jogadores campeões - em muitos casos prematuro e até triste, como no caso de Mariano Amaro - a forçosa e difícil renovação do plantel significou o início de um novo ciclo. É certo que a nova «sementeira» já prometia: logo na época de 1946/47 o Belenenses conquistou o seu primeiro Campeonato Nacional de Juniores. Por outro lado e na mesma altura surgiram as escolas de futebol (ainda pioneiras), sob a orientação do campeão Artur Quaresma.
Mas a equipa de «Honra» ressentiu-se.

Na época seguinte (1946/47) obteve «apenas» o quarto lugar, a 14 pontos do líder. A época de 1947/48 até foi mais satisfatória, com luta pelo título (o Belenenses terminou em terceiro, a apenas 4 pontos do primeiro) e a presença na final da Taça de Portugal. Porém essa mesma final ficaria marcada pelo desolador impedimento de última hora do capitão Amaro (capitão do Belenenses e da Selecção Nacional, note-se), acometido de doença grave. Transtornada, a equipa falhou a oportunidade (com derrota por 3-1 frente ao Sporting). Para cúmulo, o mítico treinador argentino Alejandro Scopelli (para sempre Belenenses do coração) viria a ser despedido em circunstâncias pouco agradáveis.

Nas três épocas seguintes a situação da equipa agravou-se progressivamente e, em simultâneo, acentuavam-se as dificuldades financeiras. Depois de novo terceiro lugar na época de 1948/49 (a 7 pontos do primeiro), seguiu-se um quarto lugar na época 1949/50 (a 18 pontos do primeiro) e um 9º lugar em 1950/51 (a 21 pontos do primeiro), a pior classificação do Belenenses até aquela data.

Os tempos eram outros. O profissionalismo, não muito antes considerado vergonhoso, passou a padrão vulgar. Em consequência - e embora não fosse propriamente novidade (muito menos no Belenenses) - o recrutamento de talentos além-fronteiras (com preferência para goleadores) afigurava-se como uma vantagem competitiva fundamental. O Belenenses tinha de reagir.

O Belenenses reagiu… e bem. Depois de ter conseguido suportar as graves dificuldades financeiras - com rigor e notáveis sacrifícios - recuperou a audácia que tão bem lhe assentava desde nascença. No dia 5 de Maio de 1951 inaugurou uma importantíssima delegação na Avenida da Liberdade (nº 105 – 2º andar), em pleno coração de Lisboa. Embora não fosse a primeira da sua história, viria a ser a mais emblemática e bem sucedida de todas. A sua situação era de tal modo vantajosa que o Clube transferiu para ali os seus serviços de secretaria, instalando também um serviço médico. Tudo isto para estar mais perto de mais adeptos, mas também de boa parte dos seus atletas.

No futebol, a «revolução» teve alcunha… um nome que o futebol português jamais esquecerá: em Setembro de 1951 fez a sua estreia Sebastião Lucas da Fonseca, mais conhecido como «Matateu». O ingresso do «Diamante Negro» foi um decisivo ponto de viragem, mais tarde complementado com a chegada de outros jogadores lendários como o argentino Di Pace (Matateu afirmaria, décadas mais tarde: «Eu fui um marcador de golos, mas o Di Pace é que foi o maior de todos») e o não menos genial Vicente Lucas (irmão mais novo do Matateu).
As Salésias recuperaram a euforia de outrora, inebriadas por um futebol mágico e arrebatador que de novo arrastava multidões.

Entretanto, noutras áreas do Clube, devemos assinalar ainda:
- a inauguração de uma nova e impressionante Sala de Troféus, por ocasião do 34º aniversário;
- a criação de uma pista de ciclismo nas Salésias (sem custos para o clube), devidamente acompanhada por um fulgurante regresso às competições, com destaque óbvio para a Volta a Portugal;
- as brilhantes vitórias no atletismo, com a conquista de vários campeonatos por equipas (femininos), vários títulos individuais e o estabelecimento de inúmeros recordes. À cabeça do sucesso, um nome para nunca esquecer: Georgete Duarte.
E, mais importante ainda, o novo estádio tornava-se realidade. Devido aos compreensíveis atrasos no arranque e execução da obra (como veremos adiante), o Belenenses conseguiu o adiamento do severo prazo imposto pela CML para o abandono do Estádio José Manuel Soares. 1956 seria o ano do adeus.

Como a saudade não consegue muitas vezes virar costas à tristeza, quis o destino que entre as últimas recordações das Salésias se intrometesse um episódio amargo… talvez o mais amargo da história do Belenenses.

Provida de jogadores fenomenais (como os que referimos atrás – Matateu, Di Pace ou Vicente), a equipa de futebol chegou à última jornada do Campeonato Nacional de 1954/55 em primeiro lugar...

...com um ponto de vantagem sobre o segundo classificado, o Benfica. O Belenenses deveria levar de vencida o Sporting, já que a vitória do Benfica no seu jogo (frente ao Atlético) parecia mais que certa. Esta mesma certeza ditava que os sportinguistas já não tivessem qualquer esperança de ser campeões, mesmo que derrotassem o Belenenses (ficariam a um ponto dos «encarnados»).

O desfecho foi terrível. A poucos minutos do fim do jogo, o Belenenses vencia por 2-1 e já se fazia a festa nas Salésias. O resultado já deveria ser mais dilatado, uma vez que o árbitro preferiu ignorar um lance em que o guarda-redes leonino defendeu um remate de Matateu… para além da linha de golo. O juiz de linha correu para o centro do terreno. O próprio guardião do Sporting viria a reconhecer que tinha sido golo. Mas de nada valeram as desesperadas súplicas do «Diamante Negro». Quando já só restavam apenas quatro minutos, o Belenenses sofreu o golo do empate numa jogada absurdamente simples.
Consumada a vitória do Benfica, as Salésias inundaram-se de lágrimas.

Como consolação, a conquista da segunda Bola de Prata por Matateu (que já havia conquistado a primeira de todas, dois anos antes) e a participação na prestigiada Taça Latina, a maior competição a nível europeu de então. O Belenenses não conseguiu levar de vencida em Paris os poderosos Real Madrid (que venceria nas épocas seguintes as primeiras cinco edições da Taça dos Campeões Europeus) e AC Milan… mas também a Europa rendeu-se a Matateu.

O título de 1955/56, última época completa nas Salésias, foi para o Futebol Clube do Porto (cuja última conquista datava de 1940), terminando o Belenenses em 3º lugar.
Ainda ensombrados pela tremenda desilusão de Abril de 1955, assim foram os últimos dias no já saudoso campo.

O último encontro internacional decorreu a 31 de Maio de 1956, frente ao Sevilha, que curiosamente havia sido o adversário no primeiro, 35 anos antes.
O último jogo do Belenenses no Estádio José Manuel Soares realizou-se na primeira jornada do Campeonato Nacional, a 9 de Setembro do 1956. Praticamente cumpridos 29 anos sobre o primeiro jogo oficial ali realizado, após a conquista de centenas de títulos em diversas modalidades, cerca de vinte mil Belenenses acenaram adeus às Salésias presenciando uma vitória por 4-2 frente ao Atlético.

No dia 23 de Setembro seguinte, data da inauguração do novo estádio, o Clube fez a despedida formal. Às 11 horas da manhã foi prestada homenagem a José Manuel Soares, o «Pepe», cujo monumento só mais tarde seria trasladado para o actual local. Seguidamente coube ao Presidente da Direcção arrear a bandeira e dar início ao numeroso cortejo em direcção ao Restelo, afastando-se derradeiramente a multidão do mágico recinto que tantas vezes havia colorido de alegria em azul.

O destino final das Salésias foi bem cruel para a saudade Belenense. Afinal nunca se ergueram prédios de habitação sobre o relvado que certos génios impregnaram de recordações maravilhosas. Não se fizeram jardins sobre o comprimento da pista que desafiou velozes campeões. Volvidas seis décadas sobre a sua sentença, as Salésias não foram afinal «imoladas às exigências do plano de urbanização da Capital do Império». Foram imoladas sim, mas para dar lugar a nada.
O campo ainda lá está… sem relva que se veja. Conserva umas velhas balizas, quais esqueletos fantasmagóricos. Ainda se vislumbra a velha pista de cinza, agora moldura de um baldio. No peão, barracas. No lugar da grande bancada, uma vaga ruela.

Recentemente (entre 2000 e 2004) a Direcção do Clube promoveu romarias ao local do antigo estádio (incluindo a realização de treinos simbólicos) no âmbito das comemorações de aniversário do Belenenses. O propósito foi o de homenagear campeões do passado, mas também sensibilizar os proprietários (Casa Pia de Lisboa) e a Câmara Municipal para que o espaço pudesse ser recuperado para o desporto. Ao que parece… em vão.
Numa das romarias, em 2002, foi descerrada uma placa que lembra o que pode: «C.F. OS BELENENSES / ESTÁDIO DAS SALÉSIAS / 1º CAMPO RELVADO DE PORTUGAL / 29-1-1928 A 09-09-1956».

No Restelo é ainda o monumento ao Pepe que melhor recorda aquele passado glorioso. Assim já o desejava Acácio Rosa em 1952:
«Mantém-se viva a nossa saudade – que será eterna – e a sua figura, o seu nome, a sua imagem hão-de acompanhar-nos das Salésias – Estádio José Manuel Soares – para o Restelo, porque a vida deste garoto, - e que grande jogador! – personifica a chama do idealismo e o fervor da fé belenense.»

30 anos depois da estreia de José Manuel Soares, caberia ao novo herói do «povo» azul (Matateu) abrir com a mesma chave de ouro a nova porta para o futuro do Belenenses… no Estádio do Restelo.